Mas é assim a vida pois existe uma coisa chamada “Karma”. Em linguagem popular “cá se faz, cá se paga”. Em 2016, o Dr. UCS encontrou um sector de transportes com problemas, mas também com soluções identificadas, estudadas, quantificadas e financiadas e em profunda reforma.
Mudou tudo porque era diferente e fazia diferente. E fartámos de avisar que deviam desconfiar que se fosse assim tão simples estaria feito. Para quem tinha pedido a Deus que não deixasse o poder subir-lhe à cabeça, ou tinha o contacto de acesso a Deus errado ou Deus já sabia que não havia nada que pudesse ser feito. A arrogância já tinha tomado conta da criatura e de tudo o que gravitava à volta dele.
Sim, os problemas do sector eram complexos. No sector aéreo, as mudanças no sistema aeroportuário, quando o país passou a ter 4 aeroportos internacionais, mas sobretudo com a entrada em funcionamento do aeroporto Internacional da Praia e a transferência da base da TACV para essa infraestrutura, poucos anos depois da opção feita pela TACV pela aquisição de aparelhos ATR novos, dois 72 e um 42, provocaram sérios problemas à TACV e a insistência em não se alterar o seu modelo de operações e de negócios e ajustar a empresa ao novo sistema aeroportuário e ao novo contexto internacional altamente competitivo com a entrada das low cost e a crise das legacy, fez com que o problema agravasse e entre 2012 e 2015, o quadro era realmente difícil. A administração não estava à altura dos desafios e o modelo de financiamento não era adequado. Mas os problemas estavam finalmente identificados e mudanças importantes estavam em curso.
Essas mudanças não trariam resultados espectaculares no curto prazo. Era preciso ação persistente e algum entendimento entre todos os atores políticos sobre o que era preciso fazer, e que não seria: nem fácil, nem da noite para o dia, muito menos sem dor.
O que fez UCS e o sistema MpD?
Transformou a TACV e os problemas no sistema de transportes, que em nada comparavam com a precariedade e à desorientação atual, num campo de batalha e na sua principal arma para ganhar as eleições.
No sector marítimo que o Governo da década de 90 abandonou, entregando-o ao “mercado”, inexistente ou demasiado rudimentar para dar certo, o Governo de José Maria Neves começou por investir pesadamente em infraestruturas portuárias, cais acostável, rampas RO/RO, sistemas de segurança, estatística e operações portuárias, e a partir de 2013, com financiamento do Banco Mundial, o mesmo que tinha apoiado a saída do Estado do sector na década de 90 é que na altura, 2013, já tinha entendido que num arquipélago com as características de Cabo Verde sem o Estado não há sistema de transporte que resista, e decidiu apoiar uma profunda reforma do Sector, a única forma de acabar com as fragilidades do segmento de serviço de transportes inter-ilhas.
Estava em curso, baseado em estudos de modelo operacional e financeiro para o estabelecimento de duas concessões de transportes marítimos inter-ilhas, com forte engajamento dos armadores e operadores logísticos nacionais, maior intervenção do Estado nos primeiros 5 anos, intermodalidade e capacitação da reguladora, através da criação da AMP, da segurança marítima com a criação do Fundo de Segurança e Transporte Marítimo Inter-Ilhas, do Sistema SAR integrando o marítimo e o aéreo e o reforço da capacidade de intervenção da Escola do Mar na formação inicial e continua dos marítimos.
O que fez,de novo, UCS? Desbaratou o que encontrou, permitiu que fossem feitos negócios com amigos e se estabelecesse um monopólio, completamente desregulado, em que a Concessionária manda e o
Estado obedece, a Concessionária falha e o Estado vai em seu socorro e assume os seus custos e as suas responsabilidades contratuais, a ponto de passar a dar adiantamento à empresa e a assumir a aquisição dos navios e a desresponsabilizá-la por todas as falhas que comete, contratualmente, perante os passageiros a quem devia proteger em situação de falhas.
Agora meteu-se numa nova aventura de mandar construir um barco, a correr, sem avaliar bem o que está a fazer, no último ano de mandato, e quem adquire o barco é, pasme-se, a Enapor! Ou seja, perante um monte de problemas cria outros e uma nova situação para facilitar a vida da Concessionária para que ela possa continuar a lavar as suas mãos.
No aéreo foi festa, champanhe, banho de espuma, festarola nas redes sociais, comitivas em direção ao Sal para receber aviões, 3 Ministros e 3 membros do Conselho da Administração da TACV, a estenderem as mãos ao mesmo tempo a um incrédulo representante da Icelandair, num negócio de totós, em que só quem não tem 2 dedos de testa não viu como iria acabar. Lembro-me de um “visionário” e ilustre militante do MpD a dizer que “haveria um Cabo Verde antes e um Cabo Verde depois da entrada do Icelandair”.
Realmente, numa coisa tinha razão: depois do barrete que nos passaram com a Nação quase inteira a festejar e a fazer poesia sobre os tais 11 aviões que nos ligariam ao mundo de China ao Chile, se há uma coisa que o crioulo não pode continuar a gabar-se é de ser o mais esperto cá da zona.
Até porque sucederam-se outras barretadas, sendo a mais dramática depois do baque que foi a Icelandair, a triste história do Best que em poucos dias virou Bad Fly.
E os anúncios de 11 Boeings, acompanhados de tiradas do tipo “isso não é para quem quer é para quem pode e sabe”, também acabaram em desculpas dos efeitos da Covid 19, culpa da regulação, culpa da oposição, culpa do tempo, da chuva que não veio e até das mudanças climáticas.
E nós que chamávamos atenção pelos erros, pelo excesso de euforia sem motivos, para a fragilidade e a insustentabilidade das soluções coladas com cuspe, éramos tratados como agoirentos e mensageiros da desgraça, ciumentos e invejosos, porque não fomos capazes de tais proezas.
Muita, demasiada narrativa, demasiada linha para se enrolar em prisões discursivas que não batiam com os factos e com os números.
E agora Ulisses? Está realmente lixado e mal pago, ferido com o mesmo ferro com que outrora espetou o adversário e não tem um Plano B. Não tem! A conversa dessa entrevista não podia ser mais esclarecedora. As operações domésticas da companhia aérea nacional que nunca deviam ter sido extintas, o problema não eram as inter-ilhas, agora custa pô-las de novo a andar, as dívidas acumuladas na TACV e na NewCo são insuportáveis, os parceiros da ajuda orçamental apertam o Governo, não há serviço, não há confiança, a reguladora está reduzida quase a pó, não há serviço de manutenção, os aeroportos estão privatizados num péssimo negocio, e quem usa os serviços dos aeroportos e da CVH tem que pagar. Só falta mais um negócio desastroso com a CV Handling para a tela ficar completamente borrada.
Fez campanha e ainda faz, vergonhosamente, perversamente e maldosamente com os acidentes maritimos, porque dava jeito, rendia votos, e agora está a experimentar o reverso da moeda, porque KARMA existe, colhemos o que plantamos, e esta agora a perceber, a duras penas, que os problemas não desaparecem só com a mudança de governos e que governar um país com as particularidades que Cabo Verde tem requer muito trabalho, recursos, tempo, conhecimento técnico e que sem alguma paz, algum bom-senso e algum consenso não se consegue resolver os principais problemas e os transportes é um deles.
Por que um azar nunca vem só e a teimosia e o excesso de retórica e de narrativa, sem trabalho técnico tranquilo e competente não resulta, até o avião festejado há poucas semanas com pompa e circunstância, já está envolto numa embrulhada.
Ao UCS um conselho: faz as pazes com a verdade, deixa as narrativas de lado, aceita que não tem soluções, que falhou, que confiou nas pessoas erradas e volta ao ponto em que encontrou as soluções desenhadas em 2016. Se for capaz de juntar todas as cabeças e ainda tiver margem para o Estado investir, pode correr bem. Mas já não será a bala de prata para 2026. Pelo contrário, será o seu calcanhar de Aquiles, no mínimo, se não for a cicuta que mata-lhe o sonho de um terceiro mandato.”
Sara Lopes