CARTA ABERTA AO POVO CABO-VERDIANO E ÀS AUTORIDADES DA REPÚBLICA, Uma independência de 50 anos marcada por injustiça, dor e silêncio — o caso da senhora Nela e o fracasso institucional em Cabo Verde

Jul 1, 2025 - 07:39
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CARTA ABERTA AO POVO CABO-VERDIANO E ÀS AUTORIDADES DA REPÚBLICA, Uma independência de 50 anos marcada por injustiça, dor e silêncio — o caso da senhora Nela e o fracasso institucional em Cabo Verde

Enquanto o país se prepara para celebrar os 50 anos de independência, com festas e cerimônias financiadas com milhares de contos do erário público, famílias como a nossa enfrentam o lado sombrio de uma democracia que ainda falha nos seus princípios mais básicos: justiça, dignidade e respeito pela vida — e pela morte.

A nossa dor tem nome: Nela, uma mulher cabo-verdiana cuja morte, em circunstâncias ainda misteriosas, expôs não apenas a fragilidade do sistema de saúde, mas também a indiferença de um Estado que, em pleno século XXI, não dispõe de um corpo médico-legal funcional e célere, capaz de responder com transparência e humanidade a mortes que exigem investigação.

É inaceitável que, num país com pouco mais de 500 mil habitantes, existam apenas dois médicos legistas para todo o território nacional. Ainda mais alarmante é o facto de autópsias estarem a ser realizadas em agências funerárias — sem condições técnicas adequadas, sem independência, sem aviso prévio às famílias, sem presença legal ou familiar. Isto constitui uma violação grave dos protocolos internacionais, incluindo os da Organização Mundial da Saúde (OMS) e tratados internacionais de direitos humanos dos quais Cabo Verde é signatário.

O caso da Nela, no entanto, ganha contornos ainda mais delicados e preocupantes. Ela era ex-companheira do atual Delegado de Saúde de Porto Novo e mãe de duas crianças com ele. Mesmo diante dessa ligação direta e sensível, nenhuma medida foi tomada para garantir que o processo fosse conduzido fora da sua jurisdição, de forma independente e livre de conflitos de interesse. Pelo contrário, o pedido formal da família para que a autópsia ocorresse noutra ilha foi ignorado, e até hoje não houve resposta.

Onde está o Ministério da Saúde diante desta tragédia que atinge até membros do seu próprio corpo técnico?

Como é possível que, mesmo em circunstâncias tão evidentes, o sistema não tenha agido com maior cuidado, rapidez e respeito?

Durante mais de uma semana, a família aguardou por esclarecimentos. O silêncio foi a única resposta. A autópsia foi realizada sem aviso, sem presença da família, numa agência funerária — um procedimento incompatível com qualquer princípio de justiça, legalidade ou humanidade.

Perguntamos:

Como se justifica que, após 50 anos de independência, o país ainda trate a morte com tamanho descaso?

Como pode um Estado se vangloriar de sua democracia, quando as famílias são mantidas no escuro, ignoradas e silenciadas?

Onde está a justiça que tanto se proclama?

Por que Santo Antão ainda não tem um hospital central digno, nem aeroporto funcional?

Por que a Brava segue isolada, sem transporte para sequer levar um corpo para sepultura?

Enquanto o Estado se orgulha de discursos sobre direitos humanos, empoderamento da mulher e justiça social — o povo vive uma realidade marcada por opacidade, abandono e desigualdade institucional.

Não há democracia verdadeira onde a justiça não alcança todos.

Não há independência honesta onde a dignidade humana é pisada.

Não há igualdade quando até na morte há tratamento de primeira e de segunda classe.

Este não é o país sonhado por Amílcar Cabral. Ele lutou por um Cabo Verde justo, igualitário, onde a mulher tivesse vez, e o povo, voz. Hoje, celebramos com hipocrisia aquilo que ainda está por cumprir.

Pedimos apenas aquilo que nos é de direito: respeito, verdade, justiça — e humanidade.

Assinado,

Em nome da família enlutada e da comunidade cabo-verdiana na diáspora e no arquipélago

Data: 30 de Junho de 2025