Relatório expõe falhas estruturais na aviação caboverdiana e alerta que “segurança não é slogan, é sistema”
Um relatório detalhado sobre a situação da aviação nacional, divulgado recentemente, volta a colocar em evidência os riscos e fragilidades que o setor enfrenta há anos. O documento, elaborado por um especialista que em 2017 já havia alertado para riscos operacionais e fadiga em sessões de inquérito parlamentar, reafirma que as lições do passado continuam por aprender. O autor insiste: “A segurança aérea não se protege com comunicados, mas sim com sistemas, dados e decisões coerentes.”

Desde 2017 até 2025, o relatório descreve uma sucessão de incidentes e falhas que, segundo o autor, revelam a ausência de um sistema sólido de segurança:
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Fauna e aeronaves: centenas de registos de colisões com aves, sobretudo no aeroporto da capital, expõem um risco diário ainda sem resposta definitiva.
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Medevac e perdas de vidas: casos de evacuações médicas mal geridas, incluindo o de um comandante condenado por recusa de missão, revelam falhas de coordenação entre operadores e reguladores.
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Operadores interilhas: a transição entre companhias resultou em falhas operacionais, interrupções de serviços e reclamações de passageiros, culminando na saída de um operador em 2024, deixando trabalhadores e clientes lesados.
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Suspensão do certificado pela EASA: em julho de 2022, a companhia aérea nacional viu a sua certificação suspensa, só recuperada meses depois, num processo que deixou sequelas na credibilidade do setor.
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Aeronave nova danificada: logo na primeira missão médica, uma aeronave recém-adquirida sofreu danos sérios numa aterragem brusca, expondo falhas operacionais cuja investigação continua inconclusa.
O relatório recorda que desligamentos de motor em voo (In-Flight Shut Down) são eventos conhecidos na aviação, mas, com a fiabilidade atual da tecnologia e dos sistemas de manutenção, devem ser considerados falhas graves. A média global da IATA em 2023 foi de 0,80 acidentes por milhão de voos, com apenas um fatal — um dado que confirma que “segurança é sistema”, e não improviso.
Segundo o autor, aceitar incidentes recorrentes como algo “normal” é um erro. “Houve falhas algures do sistema, além do motor, que precisam ser apuradas pelas investigações”, reforça.
Um dos pontos centrais do relatório é a denúncia de uma cultura organizacional sem responsabilização clara. Entre os fatores apontados estão:
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Falta de accountability: ausência de responsabilização mina a confiança e compromete a gestão operacional.
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Treinamento negligenciado: técnicos a trabalhar sem a devida preparação, aumentando riscos.
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Recursos insuficientes: limitações financeiras impedem substituições e inspeções regulares, elevando a probabilidade de incidentes.
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Contratos ACMI: o uso excessivo de aeronaves e tripulações arrendadas, sem fiscalização adequada, cria riscos operacionais e jurídicos.
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Gestão deficiente do SMS: cargos críticos ocupados por pessoas sem conhecimento profundo do Safety Management System, transformando-o em mera formalidade documental.
Outro ponto sensível é o modelo de gestão que permitiu a criação de uma companhia “Guest Operator” a operar sob o certificado de uma “Host Operator”. Para o autor, esse desenho dilui responsabilidades, cria conflitos de governança e fragiliza ainda mais o sistema de segurança.
O relatório reconhece que o país mantém a Categoria 1 nos padrões internacionais, mas alerta que preservar o estatuto não deve ser confundido com qualidade real. É preciso, defende, exigir competência técnica dos responsáveis, contratos transparentes e supervisão firme. “Tolerar improvisações compromete a credibilidade do sistema e põe em risco os restantes players do país”, lê-se no documento.
O relatório encerra com uma mensagem clara: sem uma verdadeira cultura de responsabilidade, a aviação nacional permanecerá vulnerável a crises e acidentes. “Sem SMS robusto, post holders competentes, regulação firme e operadores independentes, as bandeiras de ‘hub’ e ‘companhia de bandeira’ são apenas slogans — não sistemas.”
MS