O complexo industrial do coitadismo e a erosão do tecido social da Ilha Brava

(...) A ilha Brava, muitas vezes descrita como a “ilha das flores” pelo seu encanto natural e pela sua rica herança cultural, enfrenta hoje um dos maiores desafios da sua história recente: a erosão do seu tecido social. Para além das conhecidas dificuldades estruturais — como a emigração, o isolamento geográfico e a falta de investimentos — cresce também um fenômeno interno que ameaça minar a capacidade da comunidade de se reinventar e de avançar. Trata-se do que alguns chamam de “complexo industrial do coitadismo”, uma cultura enraizada de vitimização e dependência que tem fragilizado a coesão social e o espírito de iniciativa na ilha.

Aug 19, 2025 - 10:50
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O complexo industrial do coitadismo e a erosão do tecido social da Ilha Brava

O termo refere-se a uma mentalidade colectiva que transforma a condição de vítima em identidade permanente. Em vez de ser um ponto de partida para a mobilização e superação, o estatuto de “coitado” torna-se um modo de vida, quase uma indústria simbólica, onde o discurso da incapacidade e da desvantagem é constantemente reproduzido, tanto nos debates políticos como nas conversas do dia a dia.

Na Brava, esta postura é muitas vezes justificada pelo isolamento físico da ilha, pela fraca ligação marítima e pela ausência de grandes investimentos do Estado. No entanto, quando a vitimização se transforma em hábito, deixa de ser ferramenta de reivindicação legítima e passa a ser um obstáculo, pois paralisa a ação, gera conformismo e impede a construção de soluções próprias.

O resultado mais visível é a erosão da confiança comunitária. Cada vez mais, as pessoas olham umas para as outras como concorrentes pela escassez de oportunidades em vez de parceiros para a cooperação. O individualismo defensivo cresce, ao mesmo tempo em que diminuem as iniciativas colectivas sustentáveis.

Outro impacto é o enfraquecimento da juventude, que, em vez de se inspirar na tradição de bravenses corajosos e empreendedores que emigraram e triunfaram noutras paragens, muitas vezes absorve este discurso de incapacidade, acreditando que “na Brava não se pode fazer nada”. Esse pessimismo alimenta a emigração precoce e o abandono da ilha, acelerando o envelhecimento populacional e, consequentemente, a perda de dinamismo.

As associações comunitárias, que no passado desempenharam papel vital na mobilização para obras públicas, eventos culturais e apoio mútuo, também não escapam ao impacto. Muitas são corroídas por divisões internas, disputas pessoais e um certo cansaço cívico, reflexo desta lógica de vitimização coletiva.

O discurso político na Brava também tem sido afectado. Em vez de se debater projetos concretos e caminhos de desenvolvimento, o foco muitas vezes recai em denunciar constantemente as carências, como se enumerar os problemas fosse suficiente para resolvê-los. Esta narrativa constante de abandono gera indignação momentânea, mas raramente mobiliza energia transformadora.

Na prática, cria-se um ciclo: quanto mais se repete a ideia de que a Brava está “esquecida”, mais os cidadãos se resignam à ideia de que não vale a pena lutar por mudanças, reforçando ainda mais o imobilismo.

A ilha Brava tem no seu DNA uma história de resistência e de criatividade. É a terra de emigrantes que, com poucos recursos, conquistaram espaço em países como os Estados Unidos e mantiveram viva uma rede transnacional que ainda hoje apoia a ilha. É também uma ilha de artistas, poetas e músicos que deixaram marca na identidade cabo-verdiana. Foi sede do Governo colonial, teve escolas de capitães de navios, e muito mais feitos. Essa tradição de força e superação não pode ser obscurecida pelo “complexo industrial do coitadismo”.

Para inverter a tendência, é necessário revalorizar a autoestima coletiva e apostar em projetos que unam a comunidade em torno de objetivos claros e tangíveis. Mais do que reclamar o abandono, importa reinventar a forma de estar: resgatar o espírito de colaboração, apoiar os jovens com formação e inovação, investir na agricultura, pesca e criação de animais, dinamizar as associações e exigir da política local e nacional não apenas discursos, mas compromissos verificáveis e resultados concretos.

A erosão do tecido social na Brava não é inevitável. Mas para travá-la, é preciso romper com a lógica do vitimismo enquanto identidade colectiva. O futuro da ilha não depende apenas do Estado ou da diáspora, mas sobretudo da capacidade dos bravenses de se unirem, valorizarem a sua herança e acreditarem no seu próprio potencial. Caso contrário, o “complexo industrial do coitadismo” continuará a corroer silenciosamente a coesão social, deixando a ilha cada vez mais fragilizada e dependente.