Representação política em Cabo Verde, entre Mirceas e Damiões, o Parlamento que temos e o Parlamento que poderíamos ter
Cidade de Nova Sintra, 14 de Novembro de 2025 (Bravanews) - A frase “Se a Assembleia Nacional tivesse mais Mircea’s Delgado defendendo os interesses do povo em vez dos partidos, teríamos menos Damião’s Medinas” sintetiza um sentimento cada vez mais presente no debate público cabo-verdiano: o desgaste profundo da representação partidária tradicional e a percepção de que o Parlamento, em vez de ser o espaço máximo da democracia, se tornou muitas vezes um palco de obediências internas, rivalidades estéreis e carreiras políticas desconectadas das necessidades reais dos cidadãos.
Em Cabo Verde, como em grande parte dos países de sistema parlamentar, os deputados são eleitos por listas fechadas controladas obrigatoriamente pelos partidos. Isso significa que, o deputado deve a sua eleição muito menos ao eleitor e muito mais ao partido que o colocou na lista, a lealdade prioritária tende a ser “para cima” (o líder partidário) e não “para fora” (o eleitorado) e a disciplina de voto, muitas vezes automática, cria um Parlamento pouco diverso em pensamento e pobre em coragem política individual.
O resultado é o que muitos cabo-verdianos identificam hoje uma Assembleia onde poucas vozes se destacam pela independência, combatividade e compromisso com causas concretas, tornando figuras como Mircea Delgado excepções num mar de deputados discretos, silenciosos ou totalmente alinhados às ordens superiores.
A referência aos “Mircea’s Delgado” como símbolo de integridade e coragem política contrapõe-se aos “Damião’s Medinas”, expressão que evoca figuras vistas como excessivamente partidárias, pouco transparentes ou desconectadas da população.
Esse contraste realça duas formas de exercer o mandato. O deputado que questiona, fiscaliza e enfrenta o sistema, assumindo posições mesmo quando estas desagradam ao próprio partido, fala em nome de causas concretas e não apenas da agenda partidária e é reconhecido pelo povo porque está presente, activo e visível nas lutas sociais.
O deputado que segue, protege e reproduz a máquina partidária, atuando como mensageiro do partido, não como defensor do eleitor, evita conflitos internos para preservar cargos, benefícios ou futuros convites eleitorais e põe a estabilidade interna acima da responsabilidade pública.
Quanto mais predominam os segundos, mais o Parlamento se afasta da sua missão essencial, a de representar a sociedade e fiscalizar o Governo.
A forma como o sistema está desenhado cria uma consequência grave onde as pessoas deixam de acreditar nos partidos e, por arrasto, deixam de acreditar na democracia.
Em Cabo Verde, nota-se um aumento claro de abstencionismo eleitoral, sentimento de abandono, desconfiança nas instituições, percepção de impunidade e falta de responsabilização e indignação contra deputados que só aparecem em época eleitoral.
A população sente que fala, mas o poder não escuta. E quando escuta, raramente age.
Votar em pessoas e não em partidos – uma alternativa possível?
A ideia de passar de um modelo de listas partidárias fechadas para um modelo de eleição personalizada ou misto não é nova e tem sido aplicada em vários países.
Portugal debate há anos círculos uninominais, Estados Unidos, França e Reino Unido elegem representantes diretamente pelo nome, Alemanha combina voto em partido com voto em pessoa num sistema misto.
O que muda com um sistema centrado na pessoa? O deputado passa a precisar conquistar o voto diretamente do eleitor, a relação de proximidade aumenta, a responsabilização individual também e os Deputados tornam-se menos dependentes dos partidos e mais dependentes da confiança pública.
Isso reduz automaticamente o número de políticos invisíveis ou meramente obedientes.
Se Cabo Verde adoptasse um sistema mais centrado na pessoa e menos na sigla, haveria mais independência parlamentar – deputados que votam com base em consciência, argumentos e necessidades da região que representam, maior ligação entre eleitor e eleito – o deputado teria de responder ao povo e não ao partido, renovação política real – abriria espaço para cidadãos competentes, líderes comunitários, jovens, técnicos e vozes da sociedade civil, menos caciques partidários – os partidos deixariam de controlar completamente quem entra ou não na Assembleia e melhor fiscalização do Governo – porque haveria menos votos automáticos e mais debate qualificado.
Os partidos dificilmente abririam mão do seu controlo sobre as listas e sobre o Parlamento, porque isso significaria perder poder, ou seja, a reforma não virá de dentro do sistema, mas da pressão social, debate público e mobilização cidadã.
Se houvesse mais deputados como Mircea Delgado — independentes no pensamento, firmes na fiscalização, próximos do povo — e menos exemplos de carreirismo político ou subserviência partidária, Cabo Verde teria um Parlamento mais forte, mais ousado e mais útil à democracia.
E talvez a frase mais importante de toda a reflexão seja esta, “Já é hora de mudar o voto nos partidos e passar a ser nas pessoas.”
O país que queremos exige um novo modelo político, onde integridade vale mais do que cor partidária e onde a competência pesa mais do que a disciplina interna.
Essa mudança não depende apenas dos políticos. Depende, sobretudo, dos cidadãos — do voto, da exigência e da coragem coletiva de pedir um Parlamento do povo e não dos partidos.
















