Representação política em Cabo Verde, entre Mirceas e Damiões, o Parlamento que temos e o Parlamento que poderíamos ter

Cidade de Nova Sintra, 14 de Novembro de 2025 (Bravanews) - A frase “Se a Assembleia Nacional tivesse mais Mircea’s Delgado defendendo os interesses do povo em vez dos partidos, teríamos menos Damião’s Medinas” sintetiza um sentimento cada vez mais presente no debate público cabo-verdiano: o desgaste profundo da representação partidária tradicional e a percepção de que o Parlamento, em vez de ser o espaço máximo da democracia, se tornou muitas vezes um palco de obediências internas, rivalidades estéreis e carreiras políticas desconectadas das necessidades reais dos cidadãos.

Nov 14, 2025 - 22:43
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Representação política em Cabo Verde, entre Mirceas e Damiões, o Parlamento que temos e o Parlamento que poderíamos ter

Em Cabo Verde, como em grande parte dos países de sistema parlamentar, os deputados são eleitos por listas fechadas controladas obrigatoriamente pelos partidos. Isso significa que, o deputado deve a sua eleição muito menos ao eleitor e muito mais ao partido que o colocou na lista, a lealdade prioritária tende a ser “para cima” (o líder partidário) e não “para fora” (o eleitorado) e a disciplina de voto, muitas vezes automática, cria um Parlamento pouco diverso em pensamento e pobre em coragem política individual.

O resultado é o que muitos cabo-verdianos identificam hoje uma Assembleia onde poucas vozes se destacam pela independência, combatividade e compromisso com causas concretas, tornando figuras como Mircea Delgado excepções num mar de deputados discretos, silenciosos ou totalmente alinhados às ordens superiores.

A referência aos “Mircea’s Delgado” como símbolo de integridade e coragem política contrapõe-se aos “Damião’s Medinas”, expressão que evoca figuras vistas como excessivamente partidárias, pouco transparentes ou desconectadas da população.

Esse contraste realça duas formas de exercer o mandato. O deputado que questiona, fiscaliza e enfrenta o sistema, assumindo posições mesmo quando estas desagradam ao próprio partido, fala em nome de causas concretas e não apenas da agenda partidária e é reconhecido pelo povo porque está presente, activo e visível nas lutas sociais.


O deputado que segue, protege e reproduz a máquina partidária, atuando como mensageiro do partido, não como defensor do eleitor, evita conflitos internos para preservar cargos, benefícios ou futuros convites eleitorais e põe a estabilidade interna acima da responsabilidade pública.

Quanto mais predominam os segundos, mais o Parlamento se afasta da sua missão essencial, a de representar a sociedade e fiscalizar o Governo.

A forma como o sistema está desenhado cria uma consequência grave onde as pessoas deixam de acreditar nos partidos e, por arrasto, deixam de acreditar na democracia.

Em Cabo Verde, nota-se um aumento claro de abstencionismo eleitoral, sentimento de abandono, desconfiança nas instituições, percepção de impunidade e falta de responsabilização e indignação contra deputados que só aparecem em época eleitoral.

A população sente que fala, mas o poder não escuta. E quando escuta, raramente age.

Votar em pessoas e não em partidos – uma alternativa possível?

A ideia de passar de um modelo de listas partidárias fechadas para um modelo de eleição personalizada ou misto não é nova e tem sido aplicada em vários países.

Portugal debate há anos círculos uninominais, Estados Unidos, França e Reino Unido elegem representantes diretamente pelo nome, Alemanha combina voto em partido com voto em pessoa num sistema misto.

O que muda com um sistema centrado na pessoa? O deputado passa a precisar conquistar o voto diretamente do eleitor, a relação de proximidade aumenta, a responsabilização individual também e os Deputados tornam-se menos dependentes dos partidos e mais dependentes da confiança pública.

Isso reduz automaticamente o número de políticos invisíveis ou meramente obedientes.

Se Cabo Verde adoptasse um sistema mais centrado na pessoa e menos na sigla, haveria mais independência parlamentar – deputados que votam com base em consciência, argumentos e necessidades da região que representam, maior ligação entre eleitor e eleito – o deputado teria de responder ao povo e não ao partido, renovação política real – abriria espaço para cidadãos competentes, líderes comunitários, jovens, técnicos e vozes da sociedade civil, menos caciques partidários – os partidos deixariam de controlar completamente quem entra ou não na Assembleia e melhor fiscalização do Governo – porque haveria menos votos automáticos e mais debate qualificado.

Os partidos dificilmente abririam mão do seu controlo sobre as listas e sobre o Parlamento, porque isso significaria perder poder, ou seja, a reforma não virá de dentro do sistema, mas da pressão social, debate público e mobilização cidadã.

Se houvesse mais deputados como Mircea Delgado — independentes no pensamento, firmes na fiscalização, próximos do povo — e menos exemplos de carreirismo político ou subserviência partidária, Cabo Verde teria um Parlamento mais forte, mais ousado e mais útil à democracia.

E talvez a frase mais importante de toda a reflexão seja esta, “Já é hora de mudar o voto nos partidos e passar a ser nas pessoas.”

O país que queremos exige um novo modelo político, onde integridade vale mais do que cor partidária e onde a competência pesa mais do que a disciplina interna.

Essa mudança não depende apenas dos políticos.  Depende, sobretudo, dos cidadãos — do voto, da exigência e da coragem coletiva de pedir um Parlamento do povo e não dos partidos.