UM VALE DE LÁGRIMAS À PORTUGUESA - Por Jose Correia Guedes

Naquele dia voava com destino ao Funchal aos comandos de um dos dois B737/200 que a TAP tinha alugado à companhia alemã Condor para fazer face aos "picos" de verão. Eram aviões já algo cansados que embora voassem muito bem davam mostras de alguma fadiga a nível de uns quantos sistemas. Nós chamavamos-lhes com alguma ironia os B737/...150, pois de 200 tinham pouco.

Oct 14, 2025 - 18:42
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UM VALE DE LÁGRIMAS À PORTUGUESA - Por Jose Correia Guedes
Quando me pareceu que estava na altura de o fazer pedi ao Controle de Tráfego Aéreo autorização para iniciar a descida para o Funchal.
"Negativo", respondeu o controlador. "Há tráfego em sentido contrário num nível de voo inferior. Mantenha nível de voo 350 e aguarde".
Na altura ainda não existia radar secundário na Madeira e em consequência as separações eram feitas a tempo. Enquanto isto acontecia um enorme aguaceiro aproximava-se da ilha, o que poderia complicar a nossa aterragem. Não era o meu dia de sorte, pensava.
Quando finalmente fomos autorizados a descer estávamos à vertical do Porto Santo, a poucas milhas do nosso destino.
Decidi então vir por ali abaixo com tudo o que tinha à mão (speedbrakes no máximo) para tentar chegar à pista antes do aguaceiro o que de facto viria a acontecer só que o debilitado sistema de pressurização do avião não conseguia acompanhar aquele ritmo de descida e em consequência acabou por causar algum desconforto aos ouvidos dos passageiros e tripulantes também.
A aterragem decorreu sem problemas e tal como previsto minutos depois abateu-se sobre o aeroporto um pesado aguaceiro que inundou a pista e deixou a visibilidade quase a zero. Foi por um triz.
Já no estacionamento e enquanto arrumava as cartas de navegação entrou o cockpit uma Assistente de Bordo (A/B) que me falou assim:
"Oh comandante, veja lá como aterra que eu ainda tenho mais três aterragens para fazer hoje!"
Não liguei. Por um lado tinha consciência que a descida tinha sido algo "agressiva" e por outro sabia que algumas A/B daquela geração deixavam algo a desejar em termos de boas maneiras.
Minutos depois fui até à galley tomar um café e fiquei em amena cavaqueira com o Chefe de Cabina (C/C) até que a mesma A/B se aproximou de novo e atirou qualquer coisa como isto:
"Veja lá se tem mais cuidado, comandante. Eu estou doente e os meus ouvidos não aguentam outra aterragem como aquela".
Foi então que achei que a conversa estava a ultrapassar os limites da decência e disse-lhe que não permitia que me falasse naquele tom. Acrescentei que se não estava em condições não devia ter vindo voar.
Apanhada de surpresa a A/B respondeu:
"Ai é? Então dou parte de doente aqui mesmo."
Logo a seguir pegou na bagagem e abandonou o avião sem dizer nem mais uma palavra.
Ficámos com um enorme problema. O voo para Lisboa estava completamente cheio e a falta de um elemento na cabina dos passageiros iria seguramente afectar o serviço de bordo.
Assim aconteceu, de facto. O serviço ou não se fez ou foi muito reduzido, já não me lembro, mas atraiu severas críticas por parte dos passageiros. Merecidíssimas, sem dúvida.
Nesse dia ainda fomos a Bruxelas e depois disso lá chegou a altura de fazer o relatório do incidente ocorrido no Funchal para que as chefias tomassem as medidas adequadas.
O meu relatório era relativamente benigno e limitei-me a mencionar que a A/B abandonou o serviço por estar a sentir-se mal, facto de que me deu conhecimento directamente. Omiti propositadamente os termos em que o fez.
O C/C, soube-o depois, contou tudo tim-tim-por-tim-tim no seu relatório, bastante mais extenso e completo.
Não voltei a pensar no assunto até que um par de semanas depois tocaram à porta de minha casa e fui ver quem era. Lá estava a tal A/B acompanhada pela mãe e mais uma criança de colo. Choravam convulsivamente e desfaziam-se em pedidos de desculpa. "Foi sem querer, não quis ofendê-lo, estava mesmo doente, etc".
"Muito bem. Está desculpada, pode acabar com as lágrimas. Precisa mais alguma coisa?"
"Sim", respondeu a A/B. "Recebi uma notificação da TAP a dizer que me foi instaurado um processo disciplinar com intenção de despedimento. Será uma desgraça, senhor comandante, sou o único sustento da família".
Apeteceu-me perguntar por que não pensou nisso antes de abandonar o avião e de me falar naquele tom mas achei que isso não ia adiantar nada.
Entretanto as lágrimas continuavam a bom ritmo.
Quem me conhece sabe que sou um verdadeiro palerma perante situações deste tipo e lá prometi que iria tentar fazer o que pudesse para evitar o desfecho anunciado.
E assim foi. No dia seguinte dirigi-me às instalações da TAP e comecei por falar com os responsáveis pelo pessoal de cabina, comissários e assistentes de bordo.
"Trata-se de um péssimo elemento", disseram. "Há muito que nos queremos ver livres dela"
"E têm queixas?", perguntei
"Muitas"
"Mostrem lá"
"Hummm. Só temos queixas verbais. Ninguém escreveu..."
"Entendi. Querem então aproveitar-se do meu relatório para despedir a rapariga, não é?"
"Pois..."
"Fiquem sabendo que tal não vai acontecer"
Dirigi-me em seguida aos serviços de pessoal onde estava a decorrer o processo disciplinar e pedi para falar com o jurista responsável. Disse-lhe que tinha aceitado o pedido de desculpas e queria que o processo fosse arquivado.
"Impossível, comandante. O processo não pode ser travado. Só com uma ordem expressa do Director Geral de Operações de Voo".
Lá fui eu falar com o DGOV que era na altura um comandante conhecido pelo seu mau feitio e frequentes ataques de fúria. Chamavam-lhe o "Zé Craque" pois pertencia aquele pequeno grupo de pessoas que tudo o que fazem fazem muito bem. Era um piloto de altíssimo gabarito, um excelente jogador de ténis, era exímio com os tacos de golfe e na juventude tinha sido jogador de futebol de primeiro plano.
Entrei no gabinete e disse ao que ia. O DGOV, que estava ao corrente da situação, pôs as mãos na cabeça e disse-me:
"Só tu é que me arranjavas um problema destes".
Pensou e repensou e por fim atirou-me:
"Está bem. O processo vai ser arquivado mas ficas avisado que se a gaja (peço desculpa mas foi assim mesmo que o chefe falou) voltar a fazer asneiras quem eu chamo aqui és tu e não ela."
Como nunca mais fui chamado ao gabinte do DGOV presumo que não voltou a haver qualquer problema com a A/B em questão.
Nunca me agradeceu e das poucas vezes que nos cruzámos nos corredores do aeroporto senti que desviava o olhar.
Seria vergonha?