Casas de emigrantes transformam-se em ruínas, deixando a ilha em decadência

Cidade de Nova Sintra, 16 de Dezembro de 2025 (Bravanews) – A ilha da Brava, historicamente berço de intelectuais e marinheiros e uma das maiores fontes de emigração de Cabo Verde, enfrenta um dilema agridoce que está a reescrever a sua paisagem arquitetónica e social. As casas outrora orgulhosas, construídas com o suor e as remessas dos seus filhos na diáspora, estão a cair num estado de degradação avançada, transformando-se em autênticos "pardieiros" no coração das vilas e aldeias. Este fenómeno é um testemunho mudo da desconexão entre os emigrantes e a sua terra natal, e revela a paralisia institucional que impede a regeneração urbana da ilha.

Dec 16, 2025 - 11:37
Dec 16, 2025 - 13:48
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Casas de emigrantes transformam-se em ruínas, deixando a ilha em decadência

Percorrendo as ruas da Nova Sintra, Furna, Nossa Senhora do Monte, Mato, Cova Joana ou Fajã de Água, a visão é recorrente: janelas partidas, telhados desabados, paredes rachadas e mato a crescer desenfreadamente no interior de estruturas outrora sólidas. Estas são as casas dos emigrantes – muitas delas construídas com a ambição de um dia regressar, ou para garantir um refúgio e herança para as futuras gerações.

Os laços de ferro que ligavam a Brava aos seus emigrantes, especialmente nos Estados Unidos (Nova Inglaterra) e em Portugal, parecem estar a enferrujar. Com o passar das gerações no estrangeiro, e a morte dos patriarcas e matriarcas, o interesse e a ligação emocional com as propriedades ancestrais diminuem drasticamente.

"Muitas destas casas foram construídas há 50, 60 anos. Os filhos já nasceram lá fora, os netos nem sequer falam o crioulo da Brava. O valor sentimental é zero. Para eles, é apenas um custo ou um problema legal longe de casa," comenta um residente na ilha, que prefere não ser identificado.

O principal motor desta decadência é a complexidade legal e a incerteza da titularidade. Com a morte do proprietário original, a propriedade passa para um vasto leque de herdeiros espalhados pelo mundo.

Os herdeiros podem ascender a dezenas, distribuídos por vários países. A dificuldade em contactar todos, obter a sua concordância e assinar documentos transnacionais é monumental.

Muitos emigrantes morreram 'intestados' (sem testamento), e os processos de inventário nunca são iniciados devido aos custos, à burocracia e à distância.

O desinteresse em pagar impostos sobre uma propriedade que nunca usam é outro fator que contribui para o abandono.

O resultado é que muitas destas casas ficam num limbo jurídico, onde ninguém tem a autoridade legal inequívoca para vender, restaurar ou simplesmente demolir a estrutura em risco de colapso. Esta situação não só afeta a estética e a segurança pública (perigo de desmoronamento), como também paralisa o mercado imobiliário e a economia local.

Face a este cenário de degradação generalizada, a Câmara Municipal da Brava (CMB) e o Governo Central parecem estar de mãos atadas, incapazes de intervir de forma eficaz, o que gera frustração crescente entre os moradores.

A principal barreira citada pelas autoridades é o respeito pela propriedade privada. De acordo com a lei, a CMB não pode simplesmente confiscar ou intervir em casas particulares sem um longo e complexo processo legal, que geralmente exige notificação dos proprietários (o que é quase impossível dada a diáspora), declaração da ruína como perigo para a segurança pública e um processo de expropriação lento e dispendioso, que pode levar anos nos tribunais e exige que a Câmara compense os herdeiros.

"Temos as mãos atadas pela lei. Recebemos reclamações dos vizinhos todos os dias, mas não podemos mandar demolir uma casa que pertence a alguém que está em Boston ou em Lisboa. Precisamos de uma ferramenta legal mais ágil para o património abandonado," desabafa um técnico da CMB.

 

O Governo de Cabo Verde, por seu lado, é criticado por não desenvolver uma estratégia nacional ou legislação específica que lide com o património da diáspora abandonado.

Não existem incentivos fiscais significativos para os emigrantes que desejem reabilitar as suas casas ou transmiti-las a terceiros.

A ideia de criar um fundo ou uma "banca de casas" para que o Estado possa adquirir ou gerir temporariamente estas ruínas, reabilitá-las e vendê-las, nunca saiu do papel.

A criação de um gabinete especializado para ajudar a diáspora a resolver inventários e problemas de herança é uma sugestão recorrente que o Governo ainda não implementou de forma eficaz.

Para os bravenses que permanecem, as ruínas não são apenas um problema estético; são um reflexo visível da descapitalização da ilha e um obstáculo ao desenvolvimento.

As ruínas tornam-se ninhos de ratos, focos de doenças e esconderijos para lixo ou atividades ilícitas.

 A imagem pitoresca da Nova Sintra e outras localidades está a ser comprometida, afetando o potencial turístico da ilha.

A proliferação de casas abandonadas contribui para um sentimento geral de desânimo e estagnação entre a população residente.

A Brava, outrora a "ilha das flores" e símbolo da cultura cabo-verdiana, corre o risco de se tornar a "ilha dos pardieiros", a menos que a CMB, o Governo e a própria diáspora trabalhem em conjunto para desatar o nó dos herdeiros incertos e devolver a vida e a dignidade às casas que foram construídas com tanto sacrifício.