Da vanguarda naval à dependência alimentar, uma contradição que expõe a fragilidade estrutural da ilha Brava

Cidade de Nova Sintra, 20 de Dezembro de 2025 (Bravanews) - A atual dificuldade da ilha Brava em garantir algo tão elementar como os ovos de produção local não é apenas um problema conjuntural. É, acima de tudo, um sinal profundo de regressão estrutural e de perda de capacidades produtivas que, ironicamente, contrastam com a história da própria ilha. A Brava que hoje depende quase exclusivamente da ligação marítima para sobreviver é a mesma Brava que, em tempos não muito distantes, esteve na linha da frente da construção de barcos em Cabo Verde.

Dec 20, 2025 - 10:59
 0  47
Da vanguarda naval à dependência alimentar, uma contradição que expõe a fragilidade estrutural da ilha Brava

Esta contradição não pode ser ignorada.

Durante décadas, a Brava foi referência nacional na carpintaria naval. Mestres construtores bravenses produziram embarcações robustas, respeitadas e procuradas em várias ilhas. Barcos saíam da Brava para servir a pesca, o transporte inter-ilhas e até a emigração clandestina em certos períodos da história. Havia conhecimento técnico, organização comunitária, transmissão intergeracional de saberes e, sobretudo, uma cultura de fazer com o que se tem.

Essa mesma ilha, capaz de transformar madeira em embarcações que enfrentavam o Atlântico, encontra-se hoje incapaz de estruturar uma produção básica de ovos.

A questão, portanto, não é falta de capacidade. É perda de prioridade.

A Brava passou, silenciosamente, de produtora a consumidora dependente. O abandono progressivo da agricultura familiar, da criação doméstica de animais e de pequenas economias locais coincidiu com a crescente centralização do abastecimento nas ilhas maiores, sobretudo Santiago. Criou-se uma falsa sensação de segurança: os navios traziam tudo.

Quando o transporte funciona, a dependência passa despercebida. Quando falha, a fragilidade torna-se brutalmente visível.

A escassez de ovos é apenas o sintoma mais evidente. O mesmo acontece com legumes, pão, frutas, ração animal e até materiais de construção. Uma falha logística transforma-se rapidamente numa crise social.

Produzir ovos não exige grandes infraestruturas. Exige galinhas, ração, água, algum conhecimento técnico e vontade coletiva. Tudo isso já existiu — e em parte ainda existe — na Brava. O que falta é um enquadramento que transforme iniciativas dispersas em sistema funcional.

A criação de galinhas foi empurrada para a informalidade e, depois, para o esquecimento. Sem apoio veterinário, sem acesso regular a ração a preços controlados e sem um mercado minimamente organizado, os pequenos produtores desistiram. O resultado é paradoxal: uma ilha rural, com espaço e tradição, dependente de ovos transportados por mar.

Esta situação revela uma falha clara das políticas de desenvolvimento local. Fala-se frequentemente de resiliência, economia azul, segurança alimentar e desenvolvimento sustentável. No entanto, na prática, pouco ou nada foi feito para garantir o mínimo de autonomia produtiva às ilhas periféricas como a Brava.

A Câmara Municipal, o Ministério da Agricultura e o próprio Governo central parecem ter aceite a ideia de que a Brava é apenas consumidora. Não há programas estruturados de incentivo à avicultura familiar, não há projetos-piloto de produção local, não há cooperativas apoiadas nem linhas de crédito adaptadas à realidade insular.

Quando uma ilha que já construiu barcos não consegue organizar galinheiros, o problema não é técnico. É político e estratégico.

Outro fator determinante é a emigração e o envelhecimento da população. Muitos dos que tinham saber prático — seja na agricultura, na criação animal ou na construção naval — partiram ou envelheceram sem que houvesse renovação geracional. O conhecimento não foi sistematizado nem valorizado.

Ao mesmo tempo, criou-se uma cultura de dependência, onde se espera que tudo venha de fora, mediado pelo Estado, pelos navios ou pelos comerciantes. Essa mentalidade é talvez a herança mais pesada.

O ovo, neste contexto, é mais do que um alimento. É um símbolo. Representa a quebra da autonomia mínima, a incapacidade de garantir o essencial. Se falta ovo hoje, amanhã falta quê?

A história da construção naval bravense mostra que a ilha sempre teve capacidade de resposta quando existia visão, liderança e necessidade clara. A crise atual deveria ser encarada como um chamado à reconstrução dessa lógica de autonomia, adaptada aos tempos modernos.

Antes de grandes discursos sobre desenvolvimento, a Brava precisa recuperar o básico: produzir parte do que consome. Avicultura familiar, hortas comunitárias, cooperativas locais e cadeias curtas de distribuição não são ideias novas, são soluções testadas e possíveis.

Uma ilha que já enfrentou o mar construindo os seus próprios barcos não pode aceitar, como normal, depender de um navio para ter ovos.

O problema não é a falta de galinhas.
É a ausência de um projeto coletivo de futuro.